O Futuro Tem Raízes
- Gabriela Mestriner
- 26 de jun.
- 8 min de leitura
Reivindicando o design por meio da continuidade, do cuidado e da presença ancestral.
O design, na sociedade contemporânea, há muito tempo tem sido guiado por um certo compasso — um ritmo que nos empurra a olhar para frente com urgência, a celebrar a ruptura como genialidade e a premiar a velocidade como medida de progresso. O que é percebido como inédito é valorizado, enquanto o que é conhecido é descartado — tornando essa lógica parte de como imaginamos o futuro. Como Tony Fry nos lembra, o futuro não é uma tela em branco, mas um espaço já colonizado pelas trajetórias do passado e do presente. Sem reconhecer essas heranças, corremos o risco de perpetuar justamente os futuros moldados pela extração e pela desconexão — os mesmos que urgentemente precisamos desfazer.
Ao refletir sobre minha trajetória como arquiteta e designer — moldada pelos territórios culturais, materiais e cosmológicos do Sul Global, profundamente informada por epistemologias indígenas e ancestrais, mas também atravessada pelas complexidades da vida em alguns dos principais centros urbanos do mundo — escrevo como tentativa de navegar as tensões entre esses mundos fragmentados. Se, como propõe Susan Yelavich, o design é inerentemente um ato de criação de futuros, então precisamos confrontar as limitações desse impulso voltado para a frente. Em resposta, talvez possamos imaginar futuros ancorados na sabedoria duradoura daqueles que vieram antes de nós — e que há muito tempo vivem em equilíbrio recíproco com os ambientes que habitam.
Dentro desse paradigma dominante, o design tem desempenhado papel central na construção de infraestruturas que extraem não apenas recursos naturais, mas também trabalho, atenção e tempo — muitas vezes sem questionar quem se beneficia e quem é apagado. Como Matthew Wizinsky observa, o design passou de criar objetos a arquitetar comportamentos e sustentar a infraestrutura do neoliberalismo. A inovação torna-se menos um avanço coletivo e mais uma artifício de contenção, um meio para corporações criarem novos mercados, imporem monopólios e assegurar controle sobre sistemas emergentes. Ela condiciona ativamente como vivemos, nos relacionamos e sobrevivemos — um processo frequentemente confundido com progresso, mas que contribui diretamente para o colapso ambiental, os transtornos mentais e o enfraquecimento da vida coletiva. Essa mesma lógica molda como o conhecimento é definido e quais vozes são ouvidas e narradas. As epistemologias ocidentais do design há muito privilegiam a abstração, a racionalidade e a autoria individual — ferramentas de acumulação que reforçam hierarquias e marginalizam outras formas de saber, especialmente aquelas enraizadas na terra, na memória e na prática incorporada. Como aponta Costanza-Chock, o cânone dominante do design segue excluindo comunidades negras, indígenas, racializadas e pessoas com deficiência, convidando sua participação apenas quando conveniente, extraível ou “inclusiva o suficiente”, enquanto os tipos de trabalho que sustentam a vida e o cuidado — as tecnologias ancestrais e o fazer manual — continuam desvalorizados, apropriados ou estetizados à distância.
Enquanto as sociedades modernas buscavam dominar a natureza em nome do progresso, essas culturas ancestrais e indígenas atuavam em colaboração com ela. Como Julia Watson5 aponta, as narrativas tecnológicas dominantes — moldadas por humanismo, colonialismo e racismo — descartaram a inovação ancestral como primitiva. Essas narrativas alimentaram um modelo industrial baseado na extração e no controle, distanciando-se dos sistemas naturais em vez de cooperar com eles, “preferindo combustível ao fogo”. Em contraste, os saberes ancestrais e culturais carregam entendimentos essenciais para o nosso tempo. Entre eles, o Conhecimento Ecológico Tradicional (TEK, Traditional Ecological Knowledge) é particularmente significativo: um corpo cumulativo de práticas, crenças e sabedorias desenvolvidas em relação direta com a natureza. O TEK não apenas é desenhado para sustentar, e não explorar, os recursos, como também oferece um marco para lidar com muitos dos desafios urgentes da atualidade. Watson documenta tecnologias indígenas que expressam um grau de sofisticação ecológica frequentemente ausente nos sistemas industriais, como ilhas flutuantes, camadas florestais reguladoras de água e redes agrícolas recíprocas. Não são relíquias do passado, mas infra estruturas vivas e adaptáveis que seguem existindo e se provando eficazes — tecnologias que se tornaram potentes não apesar de sua ancestralidade, mas por causa dela.
A razão pela qual esses e outros sistemas foram mantidos à margem por tanto tempo não é porque lhes faltava função, mas porque não se alinhavam à mitologia colonial do progresso — uma lógica que associa avanço tecnológico à dominação e ao consumo da natureza. Como E.F. Schumacher já observava há décadas, uma das falhas conceituais mais profundas do pensamento econômico moderno é a recusa em reconhecer que a maior parte do capital de que dependemos não é gerada pelo esforço humano, mas dada pela natureza. Ainda assim, seguimos tratando esses sistemas ecológicos não como fundações interdependentes e finitas da vida, mas como fontes infinitas a serem extraídas, otimizadas e mercantilizadas. Essa ilusão está ruindo, à medida que o colapso climático, o esgotamento de recursos e a fragilidade sistêmica tornam cada vez mais visível o custo de ignorar os limites naturais. O trabalho de Julia Watson enfatiza esse momento de ruptura: “Não sofremos por falta de informação — sofremos por falta de sabedoria.”
O conhecimento ancestral frequentemente circula por formas não institucionais, transmitido em gestos, nas mãos, nas cantigas tradicionais e nas histórias de origem, incorporado nas texturas da vida cotidiana. Como Ailton Krenak lembra em Futuro Ancestral, algumas formas de entendimento não podem ser acessadas por domínio ou posse; elas não foram feitas para serem padronizadas ou domesticadas, mas sim abordadas com respeito e cuidado. De forma semelhante, Antonio Bispo dos Santos, pensador quilombola brasileiro, escreve: “Somos povos de trajetória, não de teoria.” Essa perspectiva desafia a abstração que domina o design acadêmico e profissional, e traz à tona formas de conhecimento que estão fora da educação formal — exigindo que olhemos para além dos nossos próprios mundos, para encontrar práticas e histórias onde o equilíbrio não é um recurso adicional, mas uma condição fundamental da existência.
Para moldar futuros possíveis e habitáveis, capazes de responder às crises ecológicas, sociais e psíquicas do nosso tempo, designers precisam levar a sério a tarefa de aprender com sistemas vivos e em transformação. Talvez seja essa a virada necessária: entender o design não como produção de soluções, mas como cultivo de uma relação contínua. Ailton Krenak propõe uma alternativa poderosa à noção de que o futuro deve ser projetado — uma crença enraizada no imaginário ocidental desde a revolução industrial. Em vez disso, ele sugere uma outra temporalidade, onde o futuro chega não por controle ou aceleração, mas por continuidade. No centro de seu pensamento está o conceito de alianças afetivas — entre mundos desiguais — que desafiam a lógica da globalização que busca impor uma perspectiva única, homogeneizar em nome do consumo e apagar as diferenças. Pela lente das diferenças coexistindo, o designer é menos o autor ou inventor e passa a ser conector, ouvinte — às vezes até mesmo testemunha. Não a peça central, mas parte de um sistema fraterno e potente, como define Bispo dos Santos ao falar de confluência — não como diluição, mas como amplificação — como rios que se encontram, entrelaçando correntes diferentes em algo mais potente, mais coletivo e mais capaz de sustentar complexidade. Passamos a perguntar não apenas o que está sendo feito, mas com quem, a que custo, por quais histórias. Essas alianças não se fundamentam na semelhança, mas no reconhecimento da alteridade radical e na possibilidade de transformação mútua como forma de inovação — o tipo de inovação de que mais precisamos.
Não busco idealizar o conhecimento ancestral como único caminho para o futuro, nem rejeitar ferramentas ou avanços contemporâneos essenciais para nossa existência. A sociedade atual de fato produziu invenções notáveis para lidar com desafios urgentes, mas raramente essas soluções são colocadas em prática com esse propósito. O lucro continua sendo o motor do sistema, e a noção de que precisamos apenas de mais ou melhor se mostrou não apenas insuficiente, mas destrutiva. Em vez disso, precisamos expandir nossas definições de urgência e de inovação — e encontrar um lugar entre uma coisa e outra. O conhecimento ancestral não oferece um roteiro de retorno, mas um vocabulário para imaginar de outra forma — uma lógica de design que não é capitalista por natureza, mas profundamente contemporânea em sua visão de coexistência e conexão. Precisamos abrir espaço para práticas baseadas na reciprocidade e na reparação, aprender com formas de fazer que perduram há milênios sem contribuir para destruição — saberes vivos, adaptáveis, plenamente capazes de coexistir com ferramentas contemporâneas, desde que os marcos de referência se mantenham relacionais, e não extrativistas.
Felizmente, essa abordagem já está presente em muitas práticas atuais — entre designers e coletivos que optaram por seguir trajetórias ancoradas na relação. No trabalho de Francis Kéré, por exemplo, a arquitetura se dá por meio da participação comunitária: materiais da terra são moldados coletivamente, e o processo se torna um ato de autoria compartilhada e local, não de imposição vertical. No Brasil, iniciativas como A Gente Transforma envolvem comunidades indígenas e periféricas na co-criação de design enraizado nas tradições locais, no saber material e na reciprocidade ambiental — respondendo não ao mercado, mas ao território e ao tempo. De forma semelhante, o designer mexicano Fernando Laposse trabalha com comunidades locais e processos materiais que transformam resíduos ou recursos negligenciados em peças refinadas de design, revelando seu potencial regenerativo e apontando para ciclos de perda e reparo tanto na natureza quanto na cultura.
O que essas práticas oferecem não é inovação no sentido dominante — rápido, escalável, otimizado — mas algo mais lento, mais profundo, mais enraizado. Seu valor não se mede por crescimento, mas por equilíbrio: com a terra, com as pessoas que nela vivem e com as histórias que atravessam os materiais e os fazeres. Crucialmente, elas não operam fora do mundo como ele é — elas surgem de dentro dele, mas se recusam a ser moldadas por seus valores. Viver sob a ótica capitalista é realidade, mas não justifica resignação. Essas abordagens mostram que, mesmo quando não encontramos uma saída, ainda podemos encontrar caminhos — cultivando lógicas criativas que não são capitalistas em suas prioridades e ética, mesmo que existam dentro dessa estrutura. Elas não exigem fuga nem pureza, mas reposicionamento consciente — entre escalas, contextos e comunidades.
Avançar não é abandonar o passado, tampouco repeti-lo — é reconhecê-lo como força viva, ainda pulsando sob e dentro de tudo o que criamos. Como nos lembra Paulo Freire, “o saber emerge apenas pela invenção e reinvenção, pela inquieta, impaciente e esperançosa busca que os seres humanos fazem no mundo, com o mundo e entre si.” O desafio não está em escolher entre o que foi e o que virá, mas em recusar a linearidade que os coloca em oposição.
E se o amanhã não for um horizonte distante, mas uma continuidade que se desenrola a partir daquilo que escolhemos carregar, do que escolhemos valorizar e do que nos permitimos transformar? No design — como na vida — a questão talvez não seja o que somos capazes de construir ou romper, mas o que estamos dispostos a lembrar. Os rituais, os ritmos, as inteligências compartilhadas que por tanto tempo foram negligenciadas pelos sistemas dominantes não são relíquias — são propostas. São métodos que apontam caminhos para resistir à descartabilidade, reinventar o valor e reencontrar formas de fazer que sustentem tanto a terra quanto a vida. Se existe esperança neste momento, ela reside em nossa capacidade de tecer outros caminhos — não a partir do vazio, mas entrelaçando o que persiste. O futuro talvez não esteja lá adiante. Talvez já esteja se desenhando nas mãos que seguiram fazendo, nas histórias que resistem em ser contadas, e na recusa em esquecê-las.
Bibliografia
Bispo dos Santos, Antonio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Editora UFBA, 2015.
Costanza-Chock, Sasha. Design Justice: Community-led Practices to Build the Worlds We Need. Cambridge, MA: MIT Press, 2020.
Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Tradução de Myra Bergman Ramos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
Fry, Tony. A New Design Philosophy: An Introduction to Defuturing. Sydney: UNSW Press, 1999.
Krenak, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Laposse, Fernando. fernandolaposse.com
Schumacher, E.F. O Negócio é Ser Pequeno. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1973.
Watson, Julia. Lo—TEK: Design by Radical Indigenism. Köln: Taschen, 2019.
Wizinsky, Matthew. Design After Capitalism: Transforming Design Today for an Equitable Tomorrow. Cambridge, MA: MIT Press, 2022.
Yelavich, Susan; Adams, Barbara (orgs.). Design as Future-Making. Londres: Bloomsbury Academic, 2014.
“A Gente Transforma.” agentetransforma.org.br
“Francis Kéré Architecture.” kerearchitecture.com
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